O Acidente de Riga
O Acidente de Riga
Ano passado, uma notícia esteve agitando a comunidade aérea internacional. Um acidente, dia 24 de novembro de 2019, em Riga – Letônia, durante um Campeonato Internacional de “Atletismo Aéreo”. Eu demorei muito a fazer esse post porque procurei um profissional para me ajudar com a questão técnica. É um post longo e eu sei que apenas quem realmente se interessar pelo assunto vai ler tudo. Mas, como a intenção aqui é passar informação sobre tudo relacionado às atividades aéreas, eu não podia deixar de abordar esse caso.
No segundo dia de competição da Air Athletics Russia – Federação Russa de Atletismo Aéreo – aconteceu um acidente. Após a apresentação infantil e de juniores, Evgenia Asonova (30 anos) se apresentava no tecido acrobático, quando durante uma queda, o cabo de aço que segurava o tecido se rompeu e a atleta caiu de uma altura de aproximadamente 7 metros de altura. Evgenia caiu no colchão, de cabeça para baixo, fraturou duas vértebras (uma lombar e uma torácica) e danificou a medula espinhal.
Evgenia (@geniatytitam) foi levada para Moscow, onde foi operada e agora precisa de cuidados constantes, já que ela não se mexe. A partir deste momento, ela precisa de fisioterapia, mas os médicos não sabem se ela voltará a andar.
O seguro médico cobriu apenas a cirurgia e a transferência de Evgenia de Riga para Moscow. Ela precisará pagar por todo o período de reabilitação, que não pode ser precisado pelos médicos. Ainda segundo relatos, a organização do evento se ofereceu para cobrir 3 semanas de despesas médicas, mas apenas se ela e sua treinadora (@elenakustova2017) não falassem sobre o ocorrido e excluíssem as postagens feitas sobre o acidente.
Segundo postagens que li sobre o acidente, o evento não tinha ambulância à disposição para estes casos, apenas uma enfermeira que não poderia prestar socorro. Foi preciso chamar uma ambulância, que chegou rapidamente. Zhenya, como é chamada pelos amigos, foi operada com urgência.
No DailyMail (https://www.dailymail.co.uk/news/article-7764855/Trapeze-artist-fears-never-walk-plunged-25ft.html) saiu uma matéria sobre o caso (em inglês).
Segundo as últimas atualizações, ela tem feito fisioterapia e os médicos decidiram operá-la novamente.
Ela tem muitos gastos com os enfermeiros que precisam virá-la constantemente, fraldas, medicamentos… Evgeniya está aceitando doaçoes para ajudá-la a arcar com suas despesas médicas. A doação pode ser feita via paypal. Entre em contato pelo e-mail dela: evgeniya.asonova@inbox.ru (Cuidado com os golpes. Pessoas mal intencionadas estão se aproveitando da situação para receberam doações em nome dela).
Ancoragem e equipamentos questionados
Yulia Solovyeva (@julchitays) – amiga da artista que sofreu o acidente – fez, com a orientação do profissional Alexei Vedernikov (@piramida_circus), o desenho acima, onde mostra que a ancoragem teria sido inadequada para competições. Ainda segundo as postagens, seria possível perceber, em vários vídeos feitos no momento do acidente, que a organização utilizou um cabo de metal com capacidade de carga inadequada para segurar pessoas. Além disso, havia um cabo espiralado, que impedia o giro da corda de aço, o que provavelmente fez com que ela se quebrasse. Também foi divulgada a foto de parte do cabo que se rompeu.
Alguns posts indicaram o site da loja Aerial Essentials como referência para visualizar alguns sistemas de ancoragem: https://aerialessentials.com/Advice-FAQ
O desenho abaixo, também criado por Yulia e Alexei, mostra uma sugestão de ancoragem adequada:
Erros inaceitáveis
Eu, particularmente, vejo 3 problemas graves aqui:
1 – equipamento e/ou ancoragem inadequada em uma competição internacional, onde (teoricamente) as instalações deveriam ser seguras
2 – a falta de equipe médica preparada no local
3 – o comportamento absurdo do evento de tentar se isentar de responsabilidade e tentar calar a vítima
É muito difícil falar sobre isso, principalmente quando você está vendo a história de longe. Porém, acho que esse ocorrido deve ficar de alerta para todos nós. A acrobacia aérea é sim uma atividade de risco. Muitos praticantes ignoram isso ou não tem a real noção do perigo.
Na minha opinião, a partir do momento que você decide fazer esse tipo de atividade, é seu dever aprender (um pouco que seja) sobre segurança e todos os assuntos que envolvem a prática. Vejo poucas pessoas interessadas em aprender sobre isso.
Eu não sou especialista, mas pesquiso sobre o assunto, falo com quem entende, leio sobre isso. Acho que entender o mínimo é essencial. Além disso, muitos lugares vendem equipamento que não são indicados para suportar a carga de um impacto em um aparelho aéreo. Comprar equipamento em qualquer lugar só porque é mais barato, implica em comprar um equipamento inadequado.
Eu poderia falar aqui de diversos casos que aconteceram só em 2019 (de profissionais ou amadores). Mas a ideia é usar isso para alertar as pessoas, de que elas precisam ter responsabilidade sobre a sua prática. A segurança na prática de aéreos vai muito além disso, mas vou deixar esse assunto para outro post.
A opinião de um especialista sobre o acidente de Riga
Fernando Cervantes, é técnico de acesso por corda, instrutor de trabalho em altura e NR35, trabalha com proteção contra quedas, rigging em espetáculos, resgate industrial, acesso por corda, inspeção de equipamentos, assessorias na área industrial e artística, e tudo o que pode ser relacionado às atividades nas alturas.
Vamos começar nossa análise entendendo o conceito básico de acidente:
Entende-se por acidente todo acontecimento com consequências, das mais leves às mais graves, que se carateriza por ser Involuntário, Imprevisível e Incontrolável.
Antes de qualquer atividade devemos fazer uma análise para prever e controlar riscos presentes, quando ocorre um incidente com consequências porque não fizemos uma análise preliminar de risco, não devemos chamar-lo de acidente, mas de falha.
E o que é uma falha? É todo erro cometido por falta de planejamento e prevenção ou por falta de conhecimento sobre uma atividade. As falhas tem três principais agentes causadores: A imperícia, a negligência e a imprudência.
Seguindo esta linha de raciocínio, podemos entender que tinha como prevenir e evitar o que aconteceu com Evgenia Asonova, este incidente não caracteriza como um acidente senão como uma uma falha, e uma gravíssima.
Podemos observar falha por imperícia, já que a ancoragem não era adequada e o colchão para retenção de queda era ineficiente, e também temos falha por negligência, já que não existia uma equipe médica para resposta imediata.
Agora que entendemos um pouco melhor as responsabilidades sobre o acontecido, vamos analisar os erros técnicos mais especificamente, como são o uso de cabo de aço para a suspensão, o uso de uma polia só, o backup no destorcedor, e finalmente o erro na seleção do colchão.
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Uso de cabo de aço para suspensão de pessoas em conjunto com polias.
Acontece que temos a crença popular que o cabo de aço é muito forte, por ser de metal, e que é melhor que qualquer outro material, já começamos mal com esse raciocínio, hoje em dia existem materiais e equipamentos muito mais resistentes e seguros que os cabos de aço.
Outra dificuldade, que observamos no meio circense, é de não aceitar cordas sintéticas, porque elas têm um fator de elasticidade bem maior que o do cabo de aço, e por isso acaba dificultando algumas práticas, truques e elementos acrobáticos.
A justificativa sobre o empecilho que a elasticidade provoca é aceitável e compreensível, mas erramos na hora de selecionar o cabo de aço. Não é todo cabo de aço que resiste a cargas dinâmicas, e muito menos a flexão ao passar por uma polia.
Diante a necessidade de adotar este material para nossas práticas, devemos conhecer muito bem a carga de ruptura e de trabalho do cabo, e também qual é a configuração dos filamentos de este para saber se pode ser submetido a flexão.
Os cabos de aço que comumente achamos nas lojas, são do tipo mais simples, que não suportam cargas dinâmicas e muito menos cargas na flexão.
Devemos estender esta análise aos chamados motores, que na verdade são guinchos elétricos para içamento de cargas, já que muitos deles têm o mesmo problema com seus cabos de aço, e não são adequados para içamento de pessoas.
Em conclusão, sempre devemos dar prioridade às cordas sintéticas e a sistemas de içamento usando técnicas de rigging com polias. E no caso que precisemos usar cabo de aço, devemos selecionar o cabo certificado para içamento de pessoas, e a mesma consideração sobre o motor, ele deve atender certas normas de segurança e fabricação.
Podem consultar a norma “BS 7905-1:2001 Lifting equipment for performance, broadcast and similar applications. Specification for the design and manufacture of above stage equipment (Excluding trusses and towers)”, para saber mais sobre o uso de motores e cabos de aço para suspensão de pessoas.
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Uso de uma polia única no sistema.
Quando realizamos o cálculo de esforço básico numa polia podemos observar que quanto maior for o ângulo da corda que passa por ela, será menor o esforço que esta vai sofrer, e quanto menor o ângulo da corda o esforço é maior.
Por este motivo, devemos sempre usar no mínimo duas polias para guiar o percurso de uma corda, assim garantimos que os ângulos formados pela corda não sejam agudos. A melhor configuração é quando a corda forma um ângulo de mínimo 90 graus em cada polia.
No caso do sistema montado para a competição em Riga, observamos que teria uma polia só, formando um ângulo agudo, o que aumentava o esforço no sistema de ancoragem, e esta sobrecarga pode ter influenciado também na ruptura do cabo de aço, já que sendo de um tipo e material inadequado, ao passar pela polia, este cabo sofreria uma deformação maior e mais prejudicial.
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Backup inadequado no destorcedor.
Na nossa cultura de circenses, temos a tendência ao aprendizado tradicional, isto é: Eu aprendo com meu mestre, que aprendeu com o mestre dele, e agora eu vou ensinar aos meus alunos o que meu mestre me ensinou, o conhecimento se repete de uma geração para outra.
Dentro das artes, a tradição ainda é um método muito rico e importante de transmissão de conhecimento, mas no circo estamos submetidos também à necessidade de nos atualizar, isto pelo envolvimento tecnológico da profissão. Não podemos simplesmente negligenciar a necessidade de aprender técnicas novas e atuais.
No caso específico dos “backups”, aprendemos que devemos colocar um elemento de segurança como prevenção no caso da ancoragem principal romper, até aí o raciocínio é acertado, o problema é que aprendemos a colocar o backup sempre nos mesmos elementos, ou até em lugares que não precisaria de segurança secundária, ou pior, em equipamentos onde poderia ser contraproducente, como foi o caso da instalação na competição de Riga.
Pelo relato das testemunhas presentes durante a competição, tinha um cabo enrolado preso nos dois mosquetões conectados no destorcedor, este cabo enrolou impedindo o destorcedor de continuar com a função primária de girar, uma vez que o destorcedor parou, os movimentos giratórios durante as apresentações começaram a torcer o cabo de aço, que ficou danificado e acabou rompendo na hora que recebeu uma carga maior, que foi com o movimento chamado de “queda de gota”, ou simplesmente “gota”.
Devemos entender primeiro onde e porque é necessário o backup. Se errarmos ele pode ser ineficiente e não vai evitar um incidente com lesão, também às vezes pode entrar em conflito com o sistema instalado, provocando o incidente, e no melhor dos cenários, ele será obsoleto e só servirá para aumentar nosso tempo de montagem e custos de material.
Aqui vemos a importância do planejamento, da análise de risco, de entender e conhecer nossos equipamentos; se temos pleno entendimento dos riscos e limitações de uso, poderemos visualizar melhor onde existe um perigo maior e qual é o elo mais fraco dentro de nosso sistema, é aí que devemos adotar uma medida de segurança secundária, o nosso supracitado Backup.
É importante lembrar que sempre devemos adotar medidas extra de segurança, mas estas devem ser eficientes e devem cumprir as funções para as quais foram projetadas.
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Colchão para retenção de queda inadequado.
Ante qualquer atividade em altura, com risco de queda, devemos adotar medidas que evitem ou minimizem as consequências de uma queda.
No caso do circo, a grande maioria de disciplinas não podem ser realizadas com algum sistema que evite a queda ou que suspenda o artista no ar ante um erro ou acidente, como acontece com outras atividades na indústria e construção civil. É quase impossível realizar as acrobacias se o artista está preso com um cinto tipo paraquedista e uma corda de segurança.
No caso das disciplinas áreas (tecido, lira, trapézio, etc), temos a opção de usar o colchão como elemento que minimiza as consequências da queda, o colchão deve ser considerado um EPC (Equipamento de Proteção Coletiva) e ele pode ser muito eficiente para preservar a saúde e a vida de uma pessoa na situação de queda livre.
Em outras áreas de serviço, como construção civil já estão usando colchões de ar para proteger os trabalhadores contra quedas, então vemos que este equipamento é eficiente e deve ser usado e aceito como elemento de segurança.
Mas qual foi o erro da organização da competição? Novamente vemos a falta de conhecimento, no vídeo podemos ver que não foi utilizado um sistema eficiente, foram colocados vários colchões intercalados em camadas, todos de espessura (altura) inadequada para retenção de queda, muito menos se consideramos que estava a uma altura maior que 7 metros.
Talvez o raciocínio foi que o conjunto de colchões absorveria o impacto, o que não é real, já que a característica principal para absorção de impacto é a deformação que o colchão sofrerá na hora que é atingido pela pessoa na queda livre.
Outra consideração importantíssima na hora de pensar em nosso sistema de segurança é que devemos esperar a pior situação possível, e neste caso aconteceu, a artista caiu de cabeça, se ela tivesse caído de costas ou até em pé talvez as consequências não seriam tão graves, mas não podemos planejar nossa segurança contando com a sorte, devemos estar preparados para tudo, sempre com a esperança de não acontecer nada de mal com ninguém ou de chegar a precisar desses elementos de segurança.
Quero encerrar minha análise lembrando uma frase que é muito repetida pelo pessoal que trabalha com segurança do trabalho: “Resgate e primeiros socorros é um conhecimento que aprendemos e treinamos sempre com a esperança de não ter que usar nunca”.
A chave para uma segurança eficiente é a perícia, a prudência e a diligência, devemos nos preparar para dominar nossa atividade, devemos analisar bem antes de executar e devemos respeitar sempre as regras e normas, e aí temos outra frase que salva vidas: “Na dúvida, não faz”. Vamos pedir ajuda, orientação, assessoria, vamos ler, nos informar, compartilhar dúvidas e inquietudes. Nao tem pior tolo que aquele que acha que sabe tudo e nao quer aprender coisas novas.
Vamos valorizar mais nossa vida e nossa saúde, lembremos sempre daquelas pessoas que amamos e que irão sentir nossa falta.
Dicas gerais para prevenir um acidente:
- use equipamentos adequados e certificados.
- sempre use colchão adequado e projetado para a altura e tipo de atividade.
- tenha um plano de saúde/seguro médico.
- verifique se o evento/competição que você está participando conta com equipe médica para pronto atendimento para qualquer acidente.
- verifique que o evento/competição contratou profissionais capacitados e certificados para realizar as instalações.
- entenda de segurança/equipamento/ancoragem para poder fazer uma inspeção pré-uso e checagem da instalação.
- contrate um profissional para instalar a ancoragem.